quinta-feira, 11 de abril de 2019


                                              Biografia Apócrifa


O que ela queria era falar de coisas feias, não perfilhadas por qualquer dos "parece bem" que lhe tinham atravessado a vida desde a longínqua infância. Coisas como um pequeno feto humano, esbranquiçado e com uns grãozinhos entre um esboço de pernas, dentro de um frasco de álcool, que descobrira na porta de uma mesa de cabeceira, na casa onde nascera, atrás de xaropes, zaragatoas e bálsamos. Para ela, parece que tal achado perdurou na sua memória como a cena da caveira de Hamlet. Também queria contar da vergonha e temor que sentira durante tantos anos por ter começado a masturbar-se muito antes da Primeira Comunhão e pensar que isso devia ser "um pecado mortal" que nunca podia confessar ao senhor padre, porque não sabia dizer essas coisas, tal como as outras brincadeiras de tirar as cuecas e esfregar aquela parte que causava arrepios na espinha e na cabeça, nos sítios simétricos da irmã ou da vizinha. Tanto teria a relembrar, desde os pequenos furtos às escorregadelas matrimoniais depois de descobrir que o seu homem a traía com outras e assim se sentir desobrigada de fidelidades. Mas nunca poderia publicar esses episódios da sua vida, pois os filhos, a família do marido ou fosse quem fosse não lhe perdoariam tal pouca-vergonha. Foi ter com a romancista porque precisava de contar a sua vida. Uma estranha história de tempos gastos e sabotados pelo devir dos anos. Mais do que contá-la, gostava de a deixar escrita. Disse que estava farta de fazer de senhora bem comportada e sentia o desejo obsessivo de que o seu interior verdadeiro tivesse uma descrição, não numa dessas coisas que saem como brochuras grátis nos semanários e a que chamam biografias edificantes, mas que parece não passavam de histórias muito exemplares e falsas como o pechisbeque. Teve como resposta que ela era uma pessoa normal e que todas as vidas têm escaninhos bizarros e muito feios, de que toda a gente se esquece para aliviar a memória. Que se deixasse disso de falar para gravadores de uns espertalhões das literaturas muito vendáveis que lhe podiam piratear as suas ficções reais. Ela nem imaginava os perfeitos monstros que tinham povoado a terra e que, naquele preciso momento, muitos deles, por cá andavam e estariam a cometer as maiores atrocidades. E para já não falar de toda a cáfila de sacanas, videirinhos, oportunistas, grunhos, bardamerdas que por aí pululavam. Só lhe poderia comparativamente vaticinar um lugar no céu, de qualquer dos céus disponíveis para consumo dos crentes.
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       Lourenço, Inês. Últimas Regras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2019, pp 23-24.
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