segunda-feira, 1 de abril de 2019


   Um dia perguntaram-me: "O que te deram estes trinta anos de leitura?"
   Face a esta pergunta, senti-me como fico sempre que encaro o mar - sem palavras.
   No final de um ensaio que escrevi há tempos, descrevi desta forma a minha experiência de leitor: "Ao ler qualquer uma daquelas grandes obras, fui sempre levado por ela. Eu seguia agarrado à sua manga como uma criança medrosa, e tentava imitar a sua passada enquanto percorríamos o longo rio do tempo, numa jornada que me trazia todo o tipo de sentimentos. Estas obras levaram-me consigo e depois faziam-me regressar sozinho. Só depois de voltar percebia que, afinal, ficariam comigo para sempre."
   Enquanto escrevo lembro-me de uma manhã de setembro de 2006. Enquanto eu e a minha mulher passeávamos por Dusseldorf descobrimos a antiga residência de Heinrich Heine. Não sabia que a casa de Heine estava ali.
(...) Esta é uma história da minha infância. O processo de crescimento é em muitos aspetos um processo de esquecimento, e esta foi uma forte e bonita experiência de infância que esqueci completamente ao crescer - nas tardes de verão, sob um calor insuportável, deitar-me naquela cama de cimento, o leito dos mortos, para desfrutar da frescura da vida.
   Muito anos depois li um poema de Heine, que dizia: "A morte é uma noite fria."
   Estas memórias, há muito cobertas pelo esquecimento, regressaram num ápice. Como acabadas de ser lavadas, reapareceram de forma absolutamente límpida, e não mais me abandonaram.
   Se existe na literatura alguma força mística, penso que será esta - a possibilidade de encontrar numa obra de um escritor de outra época, de outro país, de outra língua e cultura, experiências que nos pertencem. O que Heine descreveu foi a sensação que tive na morgue nos meus tempo de criança.
   Disse para mim: "É isto a literatura."
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 Hua, Yu. China em dez palavras. Lisboa: Relógio D'Água, 2018, pp 64-67.
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