terça-feira, 2 de julho de 2019


                           A Filha de David


Mãe, por onde passei, apesar de limpar
sujei. Cultivei flores, mas foram mais as que
arranquei do que as outras, as que reguei
no horto. Não matei animais
mas a guilhotina do talho trabalhou
para mim, noite e dia. Assim, se sobrevivi
foi porque alguém morreu para meu bem.

Juro por Deus que desejei que fosse perfumada
a superfície onde pousei os lábios, e no entanto
dela me desviaram pensamentos outros
que tomei por sábios.

Quis olhar para as alturas e deixei-me curvar
na direcção do chão, lá onde o meu pé direito
ganhou, sob a tira do sapato, a mancha de uma
roedura - E conclusão.

Daqui irei e pouco mais farei do que deixar
uns escritos sobre o mundo onde eu queria só erguer
e no entanto, como em tudo, fiz parte
da ruína que eu não queria.

Esposa de David, a quem a minha mentira não consente
sobre tudo o que não nomeei, os teus conselhos
de fulgor e perfeição, assim serão.
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  Jorge, Lídia. O Livro das Tréguas. Alfragide. Publicações Dom Quixote, 2019, pp 90-91.
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