quarta-feira, 3 de julho de 2019


                                              UM EU EM BICOS DE PÉS 

                                                  Victor Oliveira Mateus 


(…) Escrever 
uma obra que nos sobreviva 
é um exercício inútil. 
No fim, desaparece tudo. 

José Rui Teixeira, Ainda 


   Quando Platão defende a expulsão dos poetas da cidade, toma a medida correta pelos motivos errados. Ou melhor: pelos motivos incompletos. Convém não esquecer que Platão não visa todos os poetas, mas tão-só os líricos, já que aos epopeicos é concedida até alguma utilidade, sobretudo na instrução dos guerreiros. Mas Platão não visa só os poetas líricos, também aos comediógrafos e aos tragediógrafos é indicada a porta de saída da pólis. A falha essencial destes três tipos de autores é, para Platão, essa impossibilidade estrutural de tais artes em abandonar o sensível, tal como ele havia defendido em várias obras, sobretudo no Fedro e no Fédon. Esta impossibilidade de ascensão – ou de conversão, como diria séculos mais tarde Simone Weil ao falar de Platão! – reduz esses autores ao papel social de meras excrescências, de efeitos de uma humanidade espúria que urge eliminar. Assim, uma sociedade justa não se pode dar ao luxo de conservar no seu seio defensores de imitações e de negaças, por conseguinte, para Platão a procura da justiça social corre a par com uma rígida hierarquização da sociedade e com um espartilhar cuja eficácia não poderá perturbar o culto da racionalidade, aliás, não é por acaso que Karl Popper refere o filósofo grego como um dos pais das sociedades fechadas, esses modelos de castas onde as chefias não são questionadas. Aos poetas líricos e aos tragediógrafos não é perdoado esse exacerbar das sensações e das emoções, escolhos no aperfeiçoamento moral e social segundo o modelo platónico, e aos comediógrafos, para além dos motivos anteriores, não é igualmente desculpado esse crime de lesa-justiça cometido por Aristófanes em As Nuvens, mas, e acima de tudo, o feroz achincalhamento dos deuses que o mesmo autor ousou em As Aves, indesculpabilidade extensiva depois, por todos os platónicos, à Comédia Nova, agora pelo crime de lesa-Pátria na ridicularização da Hélade, sobretudo na pessoa desse degenerado Menandro, que ousou mesmo escrever, para riso das massas, que os aqueus quando regressaram de Tróia traziam o …. mais aberto do que a cidade que haviam acabado de conquistar. Mas Platão se dá ênfase ao vilipendiar do fazer poético é, não só pelos motivos já referidos, mas também pelo facto dessa techne irromper geminada com o demencial: na Apologia os poetas aparecem igualados aos profetas e a todos aqueles que executam um dado fazer, cujos sentido e fundamento são incapazes de explicar. Este elo entre o fazer poético e a loucura continuou séculos adentro até a atualidade, para gáudio da massa e auto-embevecimento de alguns poetas, isto mesmo numa época em que grande parte de psiquiatras, psicólogos clínicos e psicanalistas se recusam a usar o conceito, a não ser que lhes seja explicado o que é entendido por tal. Convém, portanto, frisar que a associação: perícia na manipulação das imagens/ demencial tem raízes profundas na cultura ocidental: as primeiras formulações de psicopatologias em santos, profetas, filósofos, poetas, etc. podem já ser encontradas em Eurípides e Demócrito, e o próprio Platão, no Fedro, acentua que quem quiser aprender a arte poética terá de entrar pelo delírio das musas, esta tese vigorará ao longo de séculos: segundo Séneca, Aristóteles teria também dito que não existe grande engenho sem uma extrema insânia e, já no séc. XVII, Pascal continua a ideia, afirmando que a agudeza do espírito tem extrema vizinhança com a loucura, enfim, são inúmeros os exemplos até chegarmos à célebre tese de Cesare Lombroso, que, numa obra de 1863, acaba defendendo que não há como uma boa psicose para favorecer a produção artística; a polémica de Lombroso com o seu opositor, o psiquiatra austríaco Max Nordau, decorreu até 1910, mas, e para o que nos interessa aqui, que é a desconfiança de Platão relativamente aos poetas, que, na sua exuberância, visavam exclusivamente o dizer das imagens, do inautêntico, e através dessa arte, ocupar o centro, pôr-se em bicos de pés, desinteressados da definição dos conceitos e, consequentemente, da procura da Verdade, para tudo isso haveria de contar com a firme oposição de Platão, pois essa ideia de que filhos de campónios, ou de outros estatutos sociais menores, pudessem alguma vez ocupar o centro era absolutamente intolerável para Platão, aristocrata de sangue por parte da mãe, que descendia dos antigos reis de Atenas; essa obsessão do Eu-poético (e do próprio poeta) pelo centro, que tem na antiguidade em Safo um dos seus pontos altos, e que a filosofia e a poesia orientais sempre ignoraram, não se desvaneceu após o ultra-romantismo, antes pelo contrário, desembocou depois, acompanhando o desenvolvimento informático e cibernético, num paroxismo auto-referencial de grande parte dos poetas: o eu-luminoso, o eu-espiando os seus pares, o eu-lupino ávido de poder e de esplendor, etc. aliás, seria interessante até comparar este turbilhão com algumas perturbações da personalidade devidamente estudadas e caraterizadas (1) . A esta avidez que o Eu tem, em muito do fazer poético, pelo centro, nem sequer escapou a tão crítica poesia de escárnio e maldizer, veja-se, por exemplo, a produção de Pero Garcia Burgalês. Se, como dizia Fichte, a filosofia que se tem depende da pessoa que se é, então, o mesmo poder-se-á dizer da relação poeta/poesia: a personalidade do ser humano não pode ser comparada a essa cebola tão bem cantada por grandes poetas como Miguel Hernandez e Rosa Chacel; a personalidade não é uma multiplicidade de películas reluzentes, que, camada após camada, envolvem um poço vazio; a personalidade tem um núcleo, que, na sua imutabilidade (2) , não deixa de irromper na poesia que se faz, mesmo quando se opta pelo tão mitificado fingimento. E foi isso que Platão percebeu: os poetas não navegavam pelas aparências pelo simples prazer de navegar, eles faziam-no porque nas suas orquestradas poses de exibicionismo e de pretenso demencial gostavam se pôr em bicos de pés – enquanto pessoas e enquanto eu-no-texto – e uma sociedade que visasse a justiça, o belo e o bem teria, obviamente, de proceder à exclusão desses prestidigitadores de imagens. 
    É sabido que Platão tolerava a presença do singular, mas apenas em três situações bem definidas: como elemento de utilidade na exercitação de um raciocínio que visará a eficácia na apreensão do universal, tal como aparece em O Sofista; como elemento detentor das definições supremas e, por conseguinte, como corolário do social, que, enquanto filósofo-rei, tem em si a justificação para o governo da pólis e, finalmente, como inquiridor esclarecido na persecução dos diálogos platónicos tal como nos explicita Victor Goldschmidt (3) , já que, para este filósofo, é ao Sócrates platónico, enquanto indivíduo, que compete a determinação do saber do interlocutor para que se possa chegar a um diálogo acabado ou a outro incompleto. Para além destas situações, a sociedade é um todo estruturado e hierarquizado, cujo centro é ela no seu todo ou aquele que necessariamente dela emana e é, portanto, um território de universalidade, onde jamais caberiam os fascinados pelo seu brilho pessoal, fatores de perturbação da ordem social, do aperfeiçoamento moral e da procura do bem; extrapolando agora: poder-se-á dizer que para se chegar a uma sociedade organizada, perfeita e, até mesmo, poética no seu todo, urgia a expulsão dos poetas, quais sombras espaventosas refletidas nas paredes de uma caverna. 
   Se aos poetas não deve ser concedido estatuto de cidadania – com exceção dos epopeicos, que, contudo, não passam de meros utensílios em processos de aprendizagem, logo, sem qualquer hipótese de se meterem em bicos de pés -, então, pergunta-se, qual o tipo de poesia que poderia ser tolerada, ou mesmo incentivada no seio da sociedade? Resposta: toda aquela cujo vetor apontasse para o apagamento do Eu, da singularidade, para a ocultação deliberada do poeta enquanto criador e do eu-poético que poreja nos seus textos. Numa visão filosófica e política do tipo que Platão intuiu, com os poetas todo o cuidado seria pouco! No entanto, se lermos com minúcia a escrita de Hildegarda de Bingen, a de Herrad von Landsberg ou a de S. João de Cruz, ver-se-á que uma poesia onde a conceção de autoria implodisse, paralelamente ao apagamento de um egotismo obsessivo que perpassa nos poemas, numa situação dessas essa poesia seria perfeitamente aceitável, e até mesmo necessária, para uma sociedade que vise o seu aperfeiçoamento moral, social e político, até lá, todo o poeta, todo o Eu, que visse sistematicamente o outro, nunca como fim, mas como meio para se pôr em bicos de pés, deverá ser expulso da pólis. Apenas um último exemplo (outros semelhantes poderão ser encontrados nas culturas do oriente!) para ilustrar esta posição: se lermos um dos mais belos poemas da Idade Média, O canto do irmão sol (4)  perceberemos o que é uma poesia do despojamento, da fusão e identificação com o Todo, com o Enigma, do deliberado apagamento do Eu, e pode ser de tal modo abrangente e monumental esse despojamento, que o eminente biógrafo e historiador que é André Vauchez, quando pretendeu escrever a sua enorme biografia de Francisco de Assis (5)  encontrou apenas duas fontes absolutamente credíveis (O Testamento e a Regra), para o resto o historiador em causa teve de recorrer a tudo o que é documento apócrifo e a um estudo minucioso da época nas suas múltiplas vertentes, tal havia sido a vontade e a ação de um humano, que, de passagem por aqui, apenas da sua viagem fez a sua arte, sem se pôr em bicos de pés, pelo que jamais poderia – nem deveria – ser expulso de cidade alguma, como, aliás, não o foi. No entanto, e à guisa de conclusão, acrescentaremos tão-só que esta escrita do despojamento não é passível de ser encontrada apenas no território místico-religioso, podemos detetá-la em outros horizontes teóricos completamente distintos como, por exemplo, em Cioran (6) . 
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NOTAS 

(1). Cf. Richad Sennett, A corrosão do carácter, Terramar, 2007 e Julia Kristeva, Les nouvelles maladies de l’âme, Fayard, 1993.
( 2). Posição que não contradita as teses da psiquiatria e da psicanálise da Escola Vienense de Viktor E. Frankl. Cf. também Sem consciência, 0 mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós, Robert D. Hare, Edª Artmed, 2012, bem como Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien, de Marie-France Hirigoyen, Édiitions La Découverte, 1998. 
(3). Cf. Victor Goldschmidt, Les dialogues de Platon, P.U.F., 1971. 
(4). Cf. Oeuvres, Saint François D’Assise, Albin Michel, 2006, pp 255-256. 
(5). Cf. François D’Assise, entre histoire et mémoire, Fayard, 2009. 
(6). Cioran, Cahiers, 1957-1972, Gallimard, 1997, p 87, p 94, p 480, p 690. Um exemplo: “L’idée même que je puisse viser à la gloire m’humilie, et elle me ruine à mês propres yeux.” Cioran, op. cit. p 68. 
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Mateus, Victor Oliveira. Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Critica, Nº 3, 2019. Fafe: Editora Labirinto, pp 169-175.
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