terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

 Soube mais tarde que Antínoo aproveitara aquela ausência para persuadir Chábrias a acompanhá-lo a Canopo. E voltou a casa da feiticeira.
(...) Mas de manhã aconteceu-me tocar, por acaso, num rosto  coberto de lágrimas. Perguntei-lhe com impaciência a razão daquele choro; respondeu-me humildemente desculpando-se com a fadiga. Aceitei a mentira; tornei a adormecer. A sua verdadeira agonia passou-se naquele leito, a meu lado.
(...) não sei em que momento aquele belo lebréu saiu da minha vida. Pela décima segunda hora, Chábrias entrou, agitado. Contrariamente a todas as regras, o jovem havia saído da barca sem explicar o fim e a duração da ausência: tinham passado pelo menos duas horas depois da partida.
(...) Não havia nada mais a fazer senão explorar a margem. Uma série de reservatórios que deviam ter servido outrora para cerimónias sagradas comunicava com a enseada do rio: à claridade do crepúsculo, que descia rapidamente, Chábrias avistou na borda do último tanque uma veste dobrada e sandálias. Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lado do rio. Com a ajuda de Chábrias, consegui levantar o corpo, que pesava, subitamente, como pedra. Chábrias chamou os barqueiros que improvisaram uma maca de pano. Hermógenes, chamado à presa, só pode verificar a morte (...) Tudo se desmoronava; tudo pareceu extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo aluíram e ficou só um homem de cabelos grisalhos soluçando na ponte de uma barca.


   Yourcenar, Marguerite. Memórias de Adriano. Alfragide: Leya, 2018, pp 177-179 (Tradução de Maria Lamas).
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