terça-feira, 6 de outubro de 2020


 LER CRITICAMENTE

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Abarcar a totalidade foi, desde sempre, um sonho do homem. A parcelaridade é, desde sempre, a realidade do homem. Apreender a existência é também aprender a viver dentro da parcelaridade, do fragmentarismo. Assim, com a crítica literária: atingir a Unidade da Obra, o seu etymon, o seu princípio unificador pertence ainda hoje ao domínio do desejo. Na realidade, os críticos continuam na periferia, mesmo quando encaram a obra como objecto estético e não apenas como simples realidade documental.
Dizemos que os críticos não passam da periferia por variadíssimas razões, entre as quais as seguintes:
Primeira: a obra literária é um complexo sistema plurissignificante que não se esgota em nenhum modelo de análise por mais sofisticado que este seja;
Segunda: a tentativa de abarcar o “Todo” que uma obra é, não passou de um falhado processo de boas intenções, utopia irrealizável na prática – a História Literária: a unidade do conhecimento dependeria da detecção da autenticidade e integralidade do texto, da sua génese, fontes, influências, cronologia, do exacto conhecimento de bibliografias, da sua edição crítica, das relações entre a obra e a sociedade, dos problemas de recepção, para além do estudo da própria obra e consequente procura de afinidades entre esta e as coetâneas, procurando reconstituir-se a história dos géneros literários, as correntes intelectuais que dominaram a literatura, bem como a história das épocas, sem excluir as obras de qualidade inferior, pois na opinião de Lanson “o génio é sempre do seu século, mas ultrapassa-o sempre. Os medíocres pertencem inteiramente ao seu século, estão sempre à temperatura do seu meio, ao nível do seu público”;
Terceira: o estudo “total” das obras parece requerer como “background” uma Ciência dos Textos que na opinião de Michel Grimaud (Poétique nº 43) tem como disciplinas básicas os seguintes domínios: epistemologia (filosofia das ciências), inteligência artificial, psicologia cognitiva (memória, percepção, pensamento, linguagem e comunicação), linguística, psicolinguística e pragmática, análise do discurso, sociologia, comunicação não verbal, psicanálise, semiótica, poética, tematologia (intertextualidade) estética empírica, psicologia e sociologia da arte. Apenas. (como ironicamente conclui Eduardo Prado Coelho, após fazer esta citação no prefácio de Teoria da Literatura (A. Kibédi Varga);
Quarta: Leo Spitzer criador (ou continuador de Schleiermacher) da teoria do círculo filológico tem a consciência de que o vaivém do centro à periferia e vice-versa é quase eterno, pois o “déclic” intuitivo não é automático nem universal e daí que o mestre insista na leitura como meio de aproximação da obra.
Aceitar a leitura poliédrica equivale a admitir que cada perspectiva crítica tem em conta apenas um lado da obra e que esta possui diversificados ângulos de abordagem, cada um deles com o seu centro e a sua periferia próprias.
O leitor por mais apetrechado que seja não possui o dom da ubiquidade e ao iluminar uma face da obra-poliedro deixará inevitavelmente outras faces na sombra ou na penumbra. O que, em meu entender, conferirá legitimidade a cada uma daquelas abordagens será o sistema de coerência argumentativa que conseguir criar no estudo da obra..
Aceitar a Leitura como diversidade de leituras é hoje uma ideia aceite pacificamente na universidade. Mais difícil será o consenso acerca da necessidade de fazer confluir na leitura um conjunto de outros saberes, não apenas para que a enriqueçam, mas fundamentalmente para que a esclareçam, numa linha interdisciplinar para a qual Maria Lúcia Lepecki chama a atenção num lúcido artigo intitulado Intra-Muros (inserto em Românica - 4 - 1995):
«A abertura de horizontes de pensamento, sem a qual nenhum ensino (em qualquer grau e em qualquer nível) cumpre as suas funções, parece ser a grande ausência que se pode lamentar entre nós.”(p. 198)
No mesmo artigo, aquela professora e ensaísta falando dos seus alunos (a breve trecho docentes do ensino secundário) acrescenta:
«Na impossibilidade de penetrar o fundo do fenómeno que estudam, muitas vezes os nossos alunos utilizam conceitos, fundamentais para os estudos literários, mas tirados de outras áreas do saber, cujas reais incidências culturais desconhecem. Numa situação como essa é evidente que o conceito se esvazia – ou fica-se pela primeiríssima camada da epiderme – daí resultando que o estudante acaba por se debater numa floresta terminológica que é igual a uma floresta de enganos.» (p. 201)
A propósito das florestas terminológicas de múltiplos enganos relembramos o texto «pórtico» do livro de ensaios As Vinte e Cinco Notas do Texto (1987) de Eugénio Lisboa, no qual o autor chama insistentemente a atenção (atenção que considera «o ingrediente fundamental da análise do texto» amplamente documentada na sua prática ensaística) para a necessidade de «ler sem a malícia de um programa prévio. Sem querer enfiar pelo texto abaixo a incompetência de um método pré-fabricado». Por isso insiste que «é o texto, a sua natureza, a sua força específica, a sua originalidade própria, a sua frescura intrépida, que nos hão-de sugerir o método (se algum) mais adequado. De outro modo toda a démarche crítica e analítica exibirá, irremediavelmente os seus pés de chumbo».
Eugénio Lisboa recomenda que cada vez mais há que encontrar terapia adequada para o «receio neurótico da clareza» que muito lucidamente diagnostica nalguma crítica literária acrescentando: «o desejo da clareza é a pedra de toque da boa fé de quem quer que se exprima» relembrando a propósito António Sérgio: «Um eclipse do sol é uma escuridão; mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara» e chamando a atenção para o papel da memória na leitura, abertura de horizontes:
« O acto da leitura crítica desencadeia a partir da memória, em fluxo imparável, tudo o que antes absorvemos e nos serve».
É muito importante este último verbo «servir». Com efeito na leitura nem tudo serve. Analisar é também filtrar, discutir. Para uns será avaliar, para outros tão somente iluminar, mostrar. Para todos será, necessariamente, interpretar.

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in Teresa Martins Marques, LEITURAS POLIÉDRICAS, Universitária Editora, 2002.

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