terça-feira, 20 de outubro de 2020


 Prefácio do livro Em Contramão de Álvaro Alves de Faria com desenhos de Rui Cavaleiro (Palimage, 2020).
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    Álvaro Alves de Faria, neste seu livro intitulado Em Contramão (Palimage, 2020) mantém-se fiel a uma dualidade fundamental que tem sido a pedra de toque da sua produção poética: a) a procura de uma expressividade que traduza, o mais fielmente possível, dadas vivências individuais (“Queria saber lidar com a vida,/ mas isso não é para iniciantes”, 23:6-7, neste meu texto, o primeiro número dirá sempre respeito à página e os números seguintes aos versos; “Não me adivinho/ nem sei quem sou/ no instante em que me revelo”, 41:4-6)) e igualmente certas interpretações de cariz universalizante, sejam estas de tipo antropológico (“Antigo é o suor do homem(…) Frágil é o homem/ que carrega a própria alma/ sem nunca saber”, 13:6-11); metapoético (“Canto a poesia ainda possível/ neste vale de lágrimas,/ esta poesia que fere,/ que corta. 47:1-4); social (“O que sei é que tenho vontade de explodir coisas, especialmente prédios oficiais/ onde eles se reúnem todas as tardes” 61:2-4; “Farei um favor à humanidade: explodirei o mundo amanhã/ao entardecer, para ser mais romântico”, 67:1-3), etc.  Esta procura é feita pelo poeta através, não de uma linearidade discursiva eventualmente redutora da complexidade, mas antes recorrendo a procedimentos vários de desconstrução da linguagem; b) a fuga a qualquer tentativa de etiquetagem de estarmos perante uma poética de livro único; Alves de Faria, sem fugir à coerência interna da sua já longa produção poética, desmultiplica-a em obras, que, apesar de se tangenciarem aqui e ali, enformam um somatório de livros autónomos e perfeitamente individuados –  breve exemplo: em Desviver (Escrituras, 2015) a tese central encontra-se subordinada a uma forte formalização do sentido, onde as contradições e os paradoxos se regem por um trabalhar da linguagem onde pontificam anáforas, aliterações e assonâncias; em elegias da mão esquerda (Palimage, 2017) o sentido distende-se dando azo a longos poemas monostróficos em verso livre; em A duas vozes (Palimage, 2018) surge uma obra de cariz dialogal, onde o poeta brasileiro vai trocando instantes, visões e interpretações com a poetisa portuguesa Leocádia Regalo. Por tudo isto, percebe-se a persistência e a maestria com que Álvaro Alves de Faria tem sabido edificar uma obra sólida e consistente.

    Neste seu livro Em Contramão, o poeta recorre, ao nível da explanação do sentido, ao entrecruzamento de paradoxos (“Cada um à sua maneira tenta viver/ o que já é o bastante/ diante do nada que há.”, 37:13-15; “O coração está morto/ mas ainda pulsa/ ainda pulsa/ o coração que está morto.” 95:20-23); contradições (“que seja assim este andar sempre por lugar nenhum”, 27:9; “Canto essa poesia ainda possível/essa que não existe mais”, 47:15-16); oxímoros (“lúcida loucura” 73: 15) e repetições de palavras e expressões (Cf. pp 97, 99, 119). O cismar do eu poético, complexo, desalentado, ora perscrutador ora assertivo, seria intraduzível por uma qualquer linearidade discursiva, daí Alves de Faria enveredar por um procedimento, que, qual enorme caleidoscópio verbal e de imagens, nos desvela e reforça o sentido que pretende fazer passar. Este tipo de ancoragem do discurso poético, remete-nos para a tese de John E. Jackson relativamente à poesia de Paul Celan, que, segundo este especialista da poesia moderna, se serve de um assumido caráter paradoxal, para assim poder falar dos vários tipos de experiência vivida nas nossas sociedades. Jackson exemplifica com versos que Celan recolhe de Verlaine e de François Villon, que depois de os modificar lhes imprime os paradoxos pretendidos, e o ensaísta conclui: “Um tipo de discurso no qual o Não não está separado do Sim é, em certo sentido, paradoxal (…) tal superação do princípio de identidade parece em todo o caso uma das caraterísticas de Niemandsrose. (…) O efeito radica aqui na causalidade paradoxal que identifica a curva (Krumm) e o direito (gerade). Também aqui, como no caso das rosas (num outro poema), poderemos concluir que o paradoxo é solúvel” (In La poésie et son autre. Paris: José Corti, 1998, pp 83-84). Ora, Alves de Faria, segue uma estratégia formalmente semelhante: colocado num hoje marcado pela hecatombe e por escombros, ameaçado pela desesperança e pela consciência da ruína e do desencontro (“Perdido entre as nações que vivem dentro de mim,/ mas sou estrangeiro em todas elas”, 27:1-2; “seguindo um destino/ que termina em nada,/vais ao encontro de teu abismo/e não sabes voar”, 69:5-8), por conseguinte, e ao nível das dimensões da temporalidade, o poeta vive um presente ameaçado pelo desastre – rondando a filosofia de Cioran! – lembra um passado, louvável mas irremediavelmente perdido, e, de tudo isto, infere um futuro antecipadamente condenado. Contudo, é através da memória (“Alguma memória nasce/- alguma memória sempre nasce-/neste tempo de barbárie,/ como um milagre qualquer,/desses que acontecem nas igrejas(…)/ sempre nasce uma memória/(…) para o agora”, 75:1-10), da ousadia (“Eis meu D. Quixote/a atravessar os desertos das almas/como se fosse salvar o mundo”, 19:1-3) e da imaginação (“Sempre haverá um sol em alguma janela/assim tão amarelo/que o próprio amarelo não conhece. 25:1-3), que o poeta, como já assinalámos, supera os paradoxos, deixando uma ténue frincha aberta ao (ainda) possível e é assim também que ele escapa, neste livro, a um solipsismo desistente e absoluto, bem como a um ceticismo radical. Álvaro Alves de Faria consegue deste modo que um quotidiano e uma interioridade poética complexos e plurifacetados passem de uma perceção individual a uma universalidade em que o leitor atento se reconhecerá, ou seja, a sua poética não se fecha numa mera prestidigitação lamentosa, individualizada e hermética, antes é a objetivação, a universalização, de um estar-aqui em que todo o leitor atento se reconhecerá, e essa é a marca de água da verdadeira poesia lírica (Cf. Theodor W, Adorno. Poesia Lírica e Sociedade. Coimbra: Angelus Novus, 2003, pp 13-29), é através dela que Álvaro Alves de Faria, mesmo vindo Em Contramão, acaba por se encontrar com todos nós mediante a sua acuidade e o seu brilhantismo poético.

    Paralelamente a tudo o que foi dito relativamente ao poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria, urge realçar o papel determinante que o artista plástico português Rui Cavaleiro desempenhou na concretização deste projeto que viria a desembocar na consecução do livro Em Contramão, aliás, os desenhos são mesmo, neste livro, a mola impulsionadora dos poemas. Estamos habituados a ver o desenho funcionar como ilustração da palavra escrita, ora aqui sucede exatamente o inverso: o encontro, numa Rede Social – o Twitter -, entre poeta e artista gráfico viria a originar um diálogo artístico que se prolongaria por mais de dois anos: os desenhos postados inicialmente por Rui Cavaleiro na dita Rede eram, num segundo momento, enviados a Alves de Faria, que assim o solicitava e sobre eles escreveria um poema. Deste profícuo encontro e, diremos mesmo, desta convergência no olhar o mundo e no interpretá-lo, sem que cada um perdesse a sua especificidade, resultaram 55 desenhos e 55 poemas, que formam o livro de que temos vindo a falar.

    Sem pretender elaborar uma hermenêutica do trabalho de Rui Cavaleiro nesta obra, convém, no entanto, enfatizar algumas variáveis de suma importância e que, não por acaso, estão em consonância com a parte poemática da obra. Assim, neste trabalho gráfico posemos encontrar: a ironia (p 16), essa ironia surge por vezes eivada de algum desalento (pp 52, 56), em outras de uma certa acidez (pp 54, 64); o humor (p 28); a crítica social e política (p 114), mas também o comprometimento com momentos e causas (p 120); o vivencial, que no trabalho de Rui Cavaleiro, aparece recorrentemente marcado por uma enorme solidão das figuras retratadas (pp 24, 44, 46, 48, 52, 74), o que faz aparecer como corolário certos desenhos nomeadamente o da página 70, como se aí se acenasse a tese, ilustrada igualmente pelo poeta, de que de um mundo de escombros e de ganância, para usar aqui a expressão de Peter Singer, só pode derivar esse par antinómico que é, por um lado o desespero, mas por outro, a indignação, a revolta e a vontade de superação deste imprestável aqui-hoje. Creio ser exatamente neste território que desenhos e poemas iniciaram o seu diálogo e, consequentemente, acabaram por se encontrar.

    Ainda relativamente ao trabalho gráfico é importante assinalar, que, nas suas opções estilísticas, o desenhador/ pintor recusa correntes estéticas como o Abstracionismo, o Hiper-Realismo e o Simbolismo, para assumir, muitas vezes de forma veemente, um certo Realismo de cariz social, contudo, convém afastá-lo dos primeiros momentos da pintura neorrealista, embora seja possível traçar convergências entre alguns desenhos de Rui Cavaleiro e as fases ulteriores de pintores neorrealistas como por exemplo Rogério Ribeiro (Cf. quadros Pateo, Dor ); existe também, na minha opinião, alguns desenhos que fazem lembrar os grandes quadros do Fauvismo (Cf. Quai des Grands Augustins e Saint-Michel et le Quai des Grands Augustins, ambos de Albert Marquet) e em outros Rui Cavaleiro usa com tenacidade e mestria técnicas de colagem e de sobreposição de materiais. Importa, no entanto, deixar vincado que este espraiamento gráfico, não deriva de um qualquer sincretismo tateante, mas antes da consciencialização de que perante uma realidade múltipla, complexa e desdobrável importa recorrer a formas igualmente múltiplas de a entender e captar essa mesma realidade, e, nesse sentido, podemos concluir então que a opção estética de Rui Cavaleiro foi feliz e eficaz.


                                                Victor Oliveira Mateus

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