domingo, 11 de julho de 2021










(Conheci Angélique Ionatos em 2011, quando a cantora se deslocou a Lisboa para um concerto no Grande Auditório da Gulbenkian. Eu tinha acabado de publicar um livro com o seu nome no título. Após alguns contactos, consegui que alguém da organização proporcionasse o nosso encontro. Foi um momento alto: eu estava com alguns amigos, após o concerto ela veio ter connosco. Era uma mulher de estatura pequena, que, apesar disso, inundava o local onde estava. Simpatiquíssima: vinha ao longe e já vinha sorrindo para nós. Ficou surpreendida com a história do meu livro, que tive o cuidado de lhe oferecer, e eu dela fiquei com as palavras escritas na foto um: "Para o Victor, carinhosamente (em grego)... ", e fiquei também com a sua música e com o modo soberbo como cantava os grandes poetas. Foi com estupefação que soube do seu falecimento, após doença prolongada, no dia 7 de julho de 2021. Ionatos era uma das vozes maiores da diaspora grega, nascera a 22 de junho de 1954 e saira da Grécia após a instauração da Ditadura dos Coronéis. Fica aqui uma pequena homenagem que lhe presto: traduzi para português uns excertos de uma estrevista sua de 2014. O texto, como é óbvio, contém as habituais marcas de oralidade, que decidi não suprimir. Este texto mostra igualmente que A.I. era não só uma cantora imensa, mas também uma mulher inteligentíssima.)

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Entrevista de Angélique Ionatos ao “Triton” em 6 de março de 2014.

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 Os sonhos chamarão a si o tempo da sua vingança

 O papel de um artista é testemunhar o seu tempo. Parece-me impensável ser grega e não prestar atenção à situação em que o país se encontra. Não reconheço Atenas quando lá vou. Na província as pessoas ainda conseguem escapar, mais ou menos. Nas grandes cidades é assustador, quero dizer, eu não reconheço nada da Atenas da minha infância. Quando era pequena, por exemplo, jamais vi pessoas a chafurdar nos caixotes do lixo, jamais!, e os gregos eram também célebres pela sua hospitalidade, pelo modo como se ocupavam dos seus vizinhos, era qualquer coisa interiorizada o facto das pessoas jamais serem indiferentes à infelicidade dos outros, mas agora tornámo-nos numa metrópole assustadora. A mendicidade atingiu um nível assustador e vejo o rosto das pessoas quando se apanha o metro ou na rua: as pessoas estão ausentes, estão alhures, é o que chamamos a estratégia do choque, ou seja, depois de levarem golpe após golpe há uma apatia que se instala e então cada um pergunta-se: bem, como vou fazer para pagar a renda da casa ou para comer? Não se pode deixar de falar de tudo isto! E depois sinto-me encolerizada, encolerizada porque vejo o governo grego – que fala em nome do povo – mas vemos que todos eles estão empanturrados de alimentos… É indecente! São autenticamente uns bobos, uns palhaços, como lhes chamam os jovens. Não quero dizer – também – que isto é exclusivo da Grécia, ela é um membro gangrenado da Europa, mas penso que essa gangrena vai alastrar por todo o corpo: essa espécie de repartição verdadeiramente escandalosa das riquezas entre os países, entre os ricos e os pobres, não pode continuar, é uma coisa da ordem da mais extrema indecência, da obscenidade – penso que vivemos num mundo obsceno! É verdade que sou uma música e, por vezes, digo-me mesmo: mas para que serve fazer arte? Fazer música observando tudo isto? Mas… penso que serve!  Era René Char, esse grande poeta, que dizia: “Neste mundo não há um lugar para a Beleza, todo o lugar é para a Beleza!”, e tenho a impressão de que fazendo algo de Belo se suprime a feiura do mundo e damos coragem – sobretudo aos jovens – para não se deixarem ficar em silêncio, para que não se fiquem pela submissão. A resistência abraça-se de forma diferente: cada um resiste à sua maneira! Mas penso que o grande drama é que esquecemos sempre que somos demasiado efémeros, não compreendo como é que num mero instante que se pode viver se pode ter a  sensação de que se é eterno, isto é, se as pessoas tivessem quotidianamente consciência da sua precaridade, do lado efémero do ser humano, talvez a vida fosse diferente, contudo, as pessoas afastam a morte como algo que não existe; nós vivemos em sociedades onde a morte não tem direito de cidadania, portanto, forçosamente esquecemos que esquecendo a morte esquecemos igualmente a vida, já que é a morte que dá sentido à vida; e agora, que envelheço, não há um único dia em que não me diga: eis que estou do outro lado!, é uma contagem ao invés!, já vivi muito mais do que aquilo que me resta viver, todavia, será que isso tem importância? Todas as coisas acabam por se tornar muito relativas, em todo o caso eu sinto-as assim!

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Um sopro de liberdade

 Quando se trata de música, tenho alguma dificuldade em falar disso, porque não podemos ser ao mesmo tempo parte e juiz; não podemos fazer música e falarmos dela. Faz já quase quarenta anos que faço espetáculos: fiz duos, fiz trios, fiz espetáculos com pequenas orquestras de câmara e penso que o encontro com a Katerine * foi muito belo e importante, foi a primeira vez que trabalhei com uma grega numa forma de duo, e o facto de estar com uma jovem grega e de termos as duas as mesmas preocupações foi também uma outra porta que se abriu no meu trabalho. Penso que quando trabalho com gente mais nova do que eu, há o desejo e a frescura que me toca e traz também o desejo de lhes dar uma dada liberdade de ser, gosto muito de dar lugar aos outros de se exprimirem musicalmente – naqueles que confio! -, a partir do momento em que eu tomo a decisão de trabalhar com alguém é porque amo esse alguém e confio nele, de facto eu tenho necessidade de uma pessoa, de um instrumento… e de perguntar a essa pessoa: o que é que isso te evoca?, o que é que gostarias de fazer com isso?, agrada-me imenso. Não me interessa brilhar em múltiplas pistas, prefiro um modo de me despojar, não tenho interesse em ser o centro só porque é a minha música, prefiro que os outros obtenham prazer. Dantes eu era muito perfecionista: aquela nota que não tinha saído bem, etc., mas depois tudo isso passou – graças a Deus! -, hoje tenho mais vontade de me alegrar, de usufruir de maior liberdade.

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* A cantora refere-se aqui a Katerine Fotinaki com quem gravou alguns temas.

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