segunda-feira, 27 de dezembro de 2021


                 A casa iluminada


Olhai honestamente para o vosso passado
escondido da rua pelos arbustos
oferecendo-se aos pedaços
naquilo que o rasurado quis extirpar
nos trechos sem relação que vos assaltam no sono
no desabamento, na estranheza
outro nome possível se transcreve


Considerai as vossas memórias pré-históricas
as primeiras declarações de amor pronunciadas
com lábios de sangue
a inervação magnética do vosso coração
dentro da caixa anatómica
dentro de uma caverna
na jangada que vos leva


Aprendei a observar com delicadeza
a terra inóspita antes de passar
a face molhada por uma chuva repentina
e o seu invencível sentido


Somos ainda os nativos, os mais remotos


Assim que chegarmos ao mar alto
e perguntarmos por que razão
seremos baixados por cordas
à casa  demolida ainda iluminada
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José Tolentino Mendonça. Introdução à pintura rupestre. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 50-51.
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