quinta-feira, 2 de junho de 2022

                 HÁ-DE PASSAR

                    "For me lips that have smiled, eyes that have shed tears"
                         In Song of Myself, Walt Whitman



E o meu rio corre
e assim avança,
mesmo se as paredes da alegria
se estreitam e é então que
lanço estas âncoras recitativas
para passar,
mesmo de lado,
a fazer espaço com os cotovelos:
aqui ao leme sou mais do que eu.
Porque tenho e tu tens adamastores desmedidos
e lá ao fundo cantam as sereias o sonho dos cínicos −
não ouço, não quero ouvir,
as paredes estreitas hão-de florir
apesar daquele filho da puta ali em baixo
andar a convencer-me de que não.
Espanca a cadela e os ganidos
enfiam-se-me no pensamento −
o ouvido é um bicho de eco infinito,
nada nunca passa, é o caracol da eternidade.
A polícia não quer saber, ninguém quer,
vou à janela para que ele saiba que eu vejo
e hoje gritou-me outra vez,
puta do caralho, vai para dentro ou esmago-te
os cornos.
Não ouço, não quero ouvir, podes cantar, sereia,
hão-de florir.
Sou impotente, é certo, não consigo salvar a cadela,
nem impedir que vendam meninas para o tráfico,
nem coisa alguma destas que dariam cabo de mim
quando as paredes se estreitam,
mas eu passo,
hão-de florir.
E a alegria passa também, nem que seja à cotovelada:
há uma miúda, Michaela DePrince,
já deve ter vinte anos, agora,
é bailarina profissional
numa boa companhia, na Holanda,
veio da Serra Leoa, internada no orfanato por um tio.
Depois de assistir ao assassinato do pai, à mãe morta à fome,
ainda viu ser cortada a barriga à professora grávida,
por uma aposta,
à catanada corta-se
o penúltimo vínculo de esperança
O último, uma folha apanhada na rua,
naquele orfanato ao fundo do inferno,
uma bailarina de tutu cor-de-rosa jogada pelo vento,
e ela, quatro anos de idade,
sem ter feito uma única pirueta na terra batida,
agarra-a,
sem saber dizer ballet,
e ela: aqui ao leme sou mais do que eu,
hão-de florir.
E foi da África à América do dêem-me os vossos pobres –
que afinal existe.
A América existe sempre.
As paredes da alegria estreitam-se, mas a gente passa.
Todos os impotentes transbordam uma fúria omnipresente
e eu, ah eu, nessa fúria bem esmagava os cornos
àquele traidor do pacto que os cães fizeram com os homens
quando abandonaram a alcateia para ser matilha.
E era bem capaz de cortar à catanada
um cobarde de orfanatos.
Mas até ao mostrengo que trago dentro
e que a voar roda três vezes,
e à sereia que lá do fundo de mim canta,
respondo, aqui ao leme sou mais do que eu,
e o meu rio corre
e assim cresce o mar,
e as paredes fazem espaço
e o meu poema há-de passar.
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 Eugénia de Vasconcellos. Livro da Perfeita Alegria. Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2021, pp 27-29.
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