terça-feira, 6 de setembro de 2022


Héracles de pé junto à janela olhando o escuro antes da madrugada.
Quando faziam amor
Gerião gostava de tocar em lenta sucessão cada um dos ossos das costas de Héracles
à medida que se dobravam para longe de si
até a um qualquer sonho obscuro, passando as mãos
desde o início do pescoço
até ao fim da coluna, causando-lhe arrepios como uma raíz à chuva.
Héracles faz
um som baixo e move a cabeça na almofada, abre lentamente os olhos.
Começa.
Gerião o que se passa? Fogo, detesto quando choras. O que foi?
Gerião pensa intensamente.
Amei-te um dia, agora não te conheço. Não o diz.
Estava a pensar no tempo - ele tacteia -
sabes, como as pessoas estão distantes no tempo juntas e distantes
ao mesmo tempo - pára.
Héracles limpa as lágrimas do rosto de Gerião
com a mão. Não podes apenas foder e não pensar? Héracles sai da cama
e entra na casa-de-banho.
Depois volta e fica de pé junto à janela um longo bocado. Quando regressa
para a cama já está a amanhecer.
Bem Gerião é só mais um sábado de manhã eu a rir e tu a chorar,
diz, enquanto se deita.
Gerião vê-o a puxar o cobertor até ao queixo. Como nos velhos tempos,
Como nos velhos tempos, diz igualmente Gerião.


  Anne Carson. Autobiografia do vermelho. S/c.: não (edições), 2020, pp 149-150 (Tradução de João Concha e Ricardo Marques).
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