quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


(...)
Comigo anda sempre,
torturando-me,
tão amargo sentimento
de desânimo
e de insuficiência...
que nem nos pobres,
ainda mais pobres que eu,
tenho conhecido!
De que se é pobre, afinal?

A impressão que sinto
é de que o mundo me foge...
de que tudo me falta...
paz, desejos, contentamento.
Erro desorientada!

Amei?
Não!
Não amei bastante,
não amei...
Dei os lábios
e dei o corpo,
furtivamente
e complacentemente,
sem prazer.
E quase fugi dos homens.
Por os aborrecer?
Não, pela dor violenta,
incomportável,
do seu desamor...
Os homens não amam!

Suponho
que toda esta desordem
em que me lançou
o meu desejo
e o meu retraimento,
este cansaço
ou enfado
dos bens ignorados
e repudiados,
me enfraqueceram...
me esgotaram...

E não é só isso!
É este sol...
É ver
e sentir correr a vida...
Este sol que teima em falar
de primaveras,
de anunciações!
(...)

Ó mais pensamentos!
Ó malévolo espírito
deste precoce dia
de verão!
Fechei as portas à luz...
mas cá dentro
ficou o calor,
ficou a quietação...
e neles boiando
este mísero sentido,
este desassossegado coração!
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Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume I, Poesia I: um dia e outro dias.../ outono havias de vir. Lisboa: Editorial Presença, 1991, pp 144-146 ( Organização: Profª Paula Morão).
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