domingo, 3 de março de 2019


(...) E ele, o homem, ele que tinha permanecido homem, apesar de toda a sua comunhão com o incriado, no meio da comunidade dos animais saídos dos ovos e das plantas nascidas de sementes, inserido em ambos, trazendo sobre si transparentes penas, barbatanas, folhas, algas, trazendo-as dentro de si, estava encerrado no petrificado acontecimento, imóvel ele também nessa espera sem espera, também ele apática criatura evanescente, e no entanto o seu olho humano nada tinha perdido do seu poder de discernimento, e tinha consciência do rosto da estrela por detrás da nuvem. Entretanto a mancha de sol, ofuscada pelo crepúsculo, clarão vermelho cinza, atingia o limite inferior do dia, e as estrelas, acendendo-se até a sua intensidade nocturna conseguir penetrar a cobertura de nuvens com o seu brilho cintilante e hesitante no início, alcançaram lentamente a sua plenitude e todo o seu brilho (...). Unidade em cima como em baixo, uma e outra mantidas pelo duplo céu, pelo duplo mar, uniam-se numa unidade penetrada por plantas e por estrelas que abarcava o mundo de tal modo fechado em si próprio, que já não era possível existir no seu espaço nenhuma individualidade, nenhuma era permitida e todas elas se dissolviam (...). De súbito, sem que nenhum tempo o impedisse, a noite transformou-se em pleno dia; de súbito, liberto dos tempos, o sol encontrava-se no zénite, rodeado pelo opalino turbilhão de estrelas, em que não faltava nenhuma estrela, nem sequer a esbranquiçada lua (...) e ele, que tinha o direito, o poder, a obrigação de assistir a este espectáculo, movido, também ele, pela animalidade transmitida à planta, ele participava no crescimento vegetal, ele próprio se tornava vegetal; era uma transformação interior e exterior, era percorrido pelas pulsações da seiva terrestre (...) ele, o vidente, também ele incluído no crescimento universal, ele, incluído no tecido das plantas, no tecido dos animais, estendia-se pelas marés do universo, estendia-se de um firmamento ao outro (...) e o seu próprio coração, preso pela palpitação, fechado nas ondas do oceano, palpitava também, vogava também, não sendo já de há muito coração, mas apenas lira, transformado em lira, como se das suas cordas de estrelas devesse finalmente soar o prometido, ainda não o próprio cântico, mas já a sua anunciação (...) fazendo vibrar a unidade do mundo num derradeiro sopro do universo: era uma preparação, poderosa preparação, poderosa de tensão...
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  Broch, Hermann, A Morte de Virgílio, Segundo Volume. Relógio d'Água Editores, s/d., pp 263-268.
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