quarta-feira, 21 de outubro de 2020


 
Amavam-se. Não se falavam, não se tocavam. Olhavam-se a uma certa distância. Fumavam cigarros muito lentamente, como se a linguagem do fumo os aproximasse em certa medida. Liam poemas, mas nunca se tocavam ou falavam um com o outro. Mesmo quando a leitura era feita em viva voz, nunca era dirigida um ao outro. Liam para si, para se poderem escutar no silêncio dos tapetes da tarde. Mas enlaçavam-se mentalmente, afagavam-se, despiam-se e até consumavam o acto sexual, num ritmo amplamente íntimo, sem voracidade. Quase a tocar a ternura e o perfeito entendimento entre dois seres. Todo este enlace era apenas uma sublimação, na realidade tal nunca acontecera ou viria a acontecer. Precipitavam-se num estado letárgico em que traduziam por amor, este estado quase platónico. Quase flutuante e inaugural. Como sedas que se viessem a desfazer por acção do tempo, restolhavam os seus passos pela habitação. Imersos nessa paixão ímpar e invisível, notoriamente envolta num tecido cristalino e fecundo. Tem o amor desígnios que nem o vento ou o afastamento põe em causa ou faz ruir.
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  Rosado, Leonora. Contágio. Fafe: Editora Labirinto, 2020, p 43.
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