sexta-feira, 25 de junho de 2021


     Mitologia galante


Pudesse eu ser um touro,
um touro belo, manso e branco,
que te levasse à certa; às montanhas brancas
de Creta, como uma cratera de Tarento,
um retrato de jovem de Rafael,
sobre a ilha hormonal de velha criança.

Salvar-te-ia (afinal, eu era filho de um deus),
dirias: "Estou apaixonada por um touro"
e seríamos cantados por poetas de Alexandria.
Neva. Todo o país é um gueto.

Deuses precisam por vezes de se sentir vivos.
A crise de meia-idade gera
incontinentes e continentes
e tu, matrona, com tuas colinas cansadas
olharás com acinte a ninfa: o teu espelho passado.
Aproxima-te. Eu sou um touro.
Eu sou um touro, belo, manso, branco.


   Daniel Jonas. Cães de chuva. Porto: Assírio & Alvim, 2021, p 112.
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