domingo, 22 de agosto de 2021


(...)
A madrugada puxava o céu para cima como uma persiana
e de algures
o azul correu a direito em direcção ao mundo.
Então ultimamente ele liga-te.
Sim.
E diz-te que agora é melhor pessoa.
Mais ou menos.

E que mais.
E que não pode viver sem mim.
Sabes que dei com ele numa discoteca há umas noites e ele parecia vivo.
Ray o que é que ele quer que eu diga.
Não a pergunta é o que tu queres que ele diga.
Quero que ele diga que não pode viver sem mim.
Pois bingo.
Mas de modo a que eu acredite.
Lá estás tu a clamar às portas do paraíso.
Ou a sentir-me como me sinto como um corpo rasgado ao meio como um estado incompleto de algum metal num processo químico como uma gota de cobre incandescente à espera de ser ressuscitado
em ouro -
Não fiques à espera disso.
Figura de estilo.
Ele ainda tem roupa em tua casa?
Alguma.
Deita-a fora.
Não posso,
Conheces as regras para isto?
Não.
É porque há regras para isto. Um navio passa, forma-se um sulco e alguma espuma e depois desaparece.
Cala-te Ray.
Ele cuspiu.
Queres entrar para comer puré de batat? Depois tenho de pintar.
Estavam em casa do Ray.
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 Anne Carson. A beleza do marido. S/c: não (edições), 2020, pp 125-126 (Tradução de Tatiana Faia).
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