quinta-feira, 20 de abril de 2023


                  A nitidez das coisas


No silêncio da casa, quando as madeiras estalam,
espero o movimento da engrenagem do tempo,
a manifestação evidente da máquina do mundo,
as pás do moinho moendo a farinha dos dias,
os dentes trincando a pele da feroz existência,
o rolar dos minutos no relógio náufrago da manhã,
o zumbido da mosca contra sua imagem no vidro da sala.


No silêncio da casa, quando estremecem os móveis
e trepidam os eletrodomésticos nas redomas de vidro,
zunindo tudo num uníssono cantochão melancólico,
espero o levantar da poeira do chão entre as moedas
nítidas do sol e as moendas trituradoras de emoções,
a polia que range a palavra contra a indiferença e a solidão,
o destino dos pratos e talheres prisioneiros lentamente
desfazendo-se em barro e mortal ferrugem.


As coisas morrem sem pânico enquanto olhamos
distraídos o vento levantando as cortinas da sala.


Só as coisas são nítidas e têm alma e acreditam
na vida eterna.


José Eduardo Degrazia. As cidades condenadas. Porto Alegre: Invencionática, 2023, p 97.
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