terça-feira, 18 de abril de 2023


George fechou a porta. Pairava sobre os três um silêncio com o travo dos grandes enigmas, um halo onde transparecia o receio de que uma qualquer fúria pudesse surgir, trazendo em si as marcas do irremediável. Nenhum deles ousava falar. George cirandava entre os dois canapés de veludo cinzento e o biombo lacado, onde do preto irrompiam delicadas flores de cerejeira, íris e lótus ao despique com pássaros minúsculos. William observava-o. Conhecia-lhe bem aquela capacidade de refrear os impulsos, aquela prudência de que uma qualquer palavra desajustada pudesse conduzir a um arrependimento futuro. George parou: na sua frente uma Daphne de mármore, que alguém colocara, no meio do salão, frente a um espelho enorme que denunciava um descalabro de décadas. Sentiu o frio do mármore a percorrer-lhe a mão, o corpo, os instintos mais primários que ele tentava controlar. Voltou-se e foi colocar-se frente a Jamie, que, embaraçado,, permanecia de pé encostado a uma das janelas. Pensou acusá-lo, dizer-lhe: confiei em ti. meti-te na minha casa, dei-te os meus amigos, os meus segredos e vê o que fizeste, vê como retribuiste; pensou dizer-lhe que se sentia traído, que a traição a um amigo é da ordem do indesculpável, pensou dizer-lhe tanta coisa, mas nem uma sílaba lhe assomava aos lábios. Olhou-lhe fixamente os olhos, a pele fina e avermelhada do rosto, os cabelos onde o brilho se deixava vencer por uma humidade pastosa e seborreica. William, sentado no outro lado da sala, percebeu naquele preciso momento o que existia entre aqueles dois homens, percebeu que aquela coisa que ali se acabara de denunciar era de tal modo imensa, que nenhum dos dois conseguira ainda imaginar. George não se desviou um milímetro sequer. Jamie enfrentando-lhe o olhar conseguiu, no entanto, ciciar: desculpa! George continuava ausente. Virou-lhe as costas. Expirou ruidosamente e, vencido, deixou-se cair numa das poltronas. Virou o rosto para William como quem pede um resgate, uma solução, uma qualquer boia que lhe pudesse corrgir a situação: diz-me como irei eu sair disto? Como irei explicar, a quem quer que seja, que acabei de descobrir que o meu pai teve um caso com Barbara Ashley, e que dessa aventura nasceu Nancy; a quem, no leito de morte, a mãe revelou tudo? Não é que a existência de bastardos no meio dos Webber-Cohen me afete; a ridícula pose do preconceito nunca me contagiou. O problema não é esse! O problema é como irei revelar o que sei. Jamie aproximou-se:
- Deixa-me ser eu a contar-lhe o que fiz. Ela acabará por entender. - George virou a cabeça para William, que, do outro lado da sala, acenou a cabeça em gesto de concordância. Jamie continuava esperando uma resposta. George levantou-se, passou-lhe a mão pelos cabelos, despenteou-lhos, tentou esboçar um sorriso e disse para ambos: vamos à cidade desanuviar.
.
.
Victor Oliveira Mateus. O diabo desceu em Chichester. Fafe: EditoraLabirinto, 2022, pp 59-60.
.
.
.