quinta-feira, 25 de maio de 2023


       
                                                XVI (Voz 2)


O amor é um hábito. Um hábito sem anúncio nem previsão. A dado momento, sem que saibamos como, esse hábito transforma-se em vício: esse vício, essa falta de respeito por nós próprios, a mim manteve-me sempre atento, afastando-me das tempestades em que a maioria dos humanos se vê envolvida. A desconfiança é, pois, uma máscara prodigiosa, com ela protegem-se os vulneráveis, mesmo correndo o risco de lhe arremessarem uma monstruosidade que não possuem. Percebi isto demasiado cedo, na nossa adolescência, por entre os jogos que os três costumávamos inventar. Os segredos são como aquelas montanhas em que o tempo vai reorganizando a poeira, sobrepondo camada em cima de camada: a dado momento, olhamos para trás e começamos a duvidar se algo foi de facto vivido ou se o inventámos para compensar uma falha qualquer. Acompanhado de hábitos e segredos vou-me transformando em fantasma, tento deslizar pela quinta sem que me notem, por vezes penso até que poderia passar através das paredes e das portas que ninguém repararia. Cada um protege-se como sabe e eu escolhi este alheamento sem acusações a nada nem a ninguém. Quando não acreditamos na estima que dizem dedicar-nos, o melhor que temos a fazer é correr a escondermo-nos. Há nos humanos uma propensão para a lamúria e para a acusação, mas de ambas as coisas estou eu livre, o meu isolamento é a minha forma de ser feliz, nele basto-me a mim próprio sem precisar de apontar o dedo a quem quer que seja. Escrever - esse modo de esquadrinhar hábitos e segredos - é uma tarefa dispensável: escreve-se sempre sobre o passado, mesmo quando o presente o atualiza e lhe dá um colorido que pensamos novo. Escreve-se sempre sobre essa fantasia com que decidimos vestir o que não há e, nesse sentido, é uma ocupação gratuita. Tudo isto pensei hoje, logo de manhã, para te falar do meu desinteresse, da minha apatia, enquanto Jamie lá continua tentando pôr ordem: na papelada, na quinta, em mim. Por vezes, olha-me com reprovação ou atira uma frase para que me sinta culpado. Aos poucos, sinto-o a assumir uma responsabilidade que não lhe conferi, e, se não lha conferi, também não lha vou tirar. Nancy passou a manhã ao telefone com Sarah. Julgo haver novidades!


  Victor Oliveira Mateus. O Diabo Desceu em Chichester. Fafe: Editora Labirinto: 2022, pp 49-50.

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