sábado, 6 de janeiro de 2024


      A JANGADA QUE CORRE O RIO LI

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Corre a jangada nas calmas águas do rio Li, nesse extenso sul

do grande continente oriental. Navega um panda-gigante, sentado

parece uma criança apesar da idade. Mastiga o quase inexistente

bambu, agarrado pela raiz à existência, florestas de sonhos

que sucumbiram lentamente pela ferocidade humana. O cenário

é mágico, saído da remota possibilidade de ser um filme

de ficção científica; dorme o encantador de serpentes,

hipnose de crentes dissimulados, que choram lágrimas de crocodilo,

furtivos e ausentes de chão, de atmosfera, revoltos na densa bruma

entre os montes de relevo cárstico. Chegará aos pagodes

de Gullin, gémeos de um ventre profundo, a lua e o sol

que o lago assimila pelas horas pedidas dos dias; fez-se noite

em Xingping. Sai o pescador pela madrugada fora quase rasante

sobre o silêncio da vida inteiriça, ensina o corvo-marinho

domesticado para agarrar as escamas duras na fome à porta.

A jangada desce o rio Li, com as barbas ao vento, o peso

dos sentimentos no olhar cansado, sobrancelhas carregadas

e rugas nos dedos mecanizados. Desce lentamente a jangada

o rio Li, engolindo as sombras da chuva, bebendo as lágrimas

de um povo milenar, somando as montanhas, que no bolso

dos afluentes levam os bandos até ao mar.

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 Carlos Nuno Granja. “As Entranhas da Alma Proscrita”. Castelo Branco: RVJ Editores, 2023, p 7.

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