segunda-feira, 8 de janeiro de 2024


Recensão de Victor Oliveira Mateus do romance Um Tempo a Fingir da autoria de João Pinto Coelho, publicada na Revista Oresteia no dia 19 de setembro de 2021.
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Uma leitura de Um Tempo a Fingir de João Pinto Coelho

 

Penso correta a leitura do mais recente romance de João Pinto Coelho a partir de uma grelha interpretativa alicerçada nos conceitos de: continuidade e rutura. Pelo que não julgo despiciendo aplicarmos esta dicotomia às mais diversas categorias da narrativa: narrador, tempo, espaço, intriga, etc. Vejamos: num primeiro momento deparamo-nos com uma narradora participante (Annina), que vai desfiando a sua história, sem que o leitor tenha dados para saber se essa mesma história é verdadeira ou a fingir, contudo, nos capítulos com a voz de Annina encaixam-se irregularmente outros com a voz do seu irmão, Ulisse, cuja função é clarificar os anteriores. Como narrador heterodiegético que é, Ulisse não deixa de nos alertar, no entanto, para o estatuto da mentira e do fingimento na personalidade da irmã e em tudo o que ela irá deixar escrito:

“Sim, é nas mentiras de Annina, em todas as omissões, que encontro a sua variante fidedigna, a maior honestidade da minha sorellina, pois decidiu impô-las a si mesma antes de as deixar por escrito.”

(p. 17)

“Afinal, mentiras desculpáveis a somar a tantas outras que Annina deixou por escrito.”

(p. 117)

“E pronto, o preâmbulo está escrito. Se lestes nas entrelinhas, já sabeis tudo o que interessa.

Ou nunca vos ocorreu que a minha Annina é um rio?

Um rio de águas furiosas a esfolar-se nos rochedos.”

(p. 154)

A partir da página 155, apenas a voz de Annina se escuta, com uma meteórica aparição de Ulisse (pp. 391-396) para nos confirmar, não só o fechamento da ação relativa ao destino da personagem principal e dos seus escritos, mas também para, de uma vez por todas, deixar claro que em Annina tudo o que era, em substância, nos conduzia indelevelmente ao paradoxo de que a verdade, sobretudo da ação principal, radica no facto de ocorrer em um tempo a fingir:

“É por isso que voltei, para vos deixar estas linhas como errata de um livro que vive de omissões. 

Chegou então o momento de vos falar de Cosimo e dizer sem rodeios que tudo o que leram sobre ele não passou de uma mentira…”

(p. 393)

O par continuidade/rutura que adotei como chave da minha leitura de Um Tempo a Fingir não nos surge apenas nos Narradores, ele irrompe igualmente na caraterização das outras personagens — exemplo: a professora Bartolini tem dentro de si a pega Gioconda; o sociopata Marzio Falaschi, o marido que não perdoa traições; a lésbica Alessia corre a par da esposa arrebatada e enfeitiçada pela sua gravidez, etc., todavia, é na dimensão do Tempo, que, sobretudo a nível formal, a dita dualidade se impõe com mais veemência: a) os dois narradores (Annina e Ulisse) tecem o enredo da obra partindo de horizontes distintos da temporalidade: Annina fala/escreve a partir das décadas de 30 e 40, enquanto que Ulisse escreve/clarifica sem sair dos anos 50; b) dentro do discurso de Annina podemos encontrar autênticas clivagens temporais, quer através de resumos, quer de outras figuras como a analepse que se encontra na página 245, em que a narradora, abruptamente, faz uma rutura na desventura de Cosimo, para relatar um episódio da sua infância. Creio forçar um pouco esta minha linha de leitura, no entanto, não posso deixar de referir os momentos de humor, bem como os de poeticidade, que, não sendo propriamente um par antinómico, transpassam ao longo desta obra, dotando-a de fluidez e de aprazimento, e imprimindo à meticulosa arquitetónica do livro uma vivacidade que o afasta de qualquer hermetismo de tipo neobarroco. Aqui ficam: um excerto de humor (neste caso negro) e outro do poético:

“Ele estava sentado no sofá, o jornal pousado nos joelhos, a olhar de boca aberta para a figura milagrosa que tinha à sua frente. Ficara sem palavras, parecia admirá-la com o seu sorriso atónito e a expressão apatetada.

– Não dizes nada? – perguntou-lhe a Falaschi, cada vez mais regalada com o efeito que causava.

E ele nada dizia.

Pudera, estava morto.”

(p. 169)

“Ultimamente, os dias envelheciam logo pela manhã. Naquele não. Peppino tinha o condão de adiar o entardecer, chegava a parecer capaz de travar o passo às nuvens para deixar o sol à vista”.

(p. 179)

 

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No enredo que assoma em Um Tempo a Fingir, a estória de Annina aparece como ação central: uma jovem judia que vive na localidade italiana de Pitigliano na época imediatamente anterior ao início da II Grande Guerra, época essa em que a direita extremista se organiza em Itália sob a batuta de Mussolini, mas Annina vive também os momentos sórdidos dessa referida guerra. Os incidentes por onde a sua vida vai passando — quer Annina os tenha vivido mesmo, quer os tenha sublimado no que vai escrevendo — são da mais diversa espécie: costureira ao lado da mãe, amante do marido da patroa, pega num lupanar de luxo, prisioneira dos fascistas, etc. No filigranar do seu romance, João Pinto Coelho deita mão de tudo o que a memória cultural lhe vai acenando, e que pode dotar a sua obra de autenticidade e eficácia: referi já o cómico e o poético, mas existem muitos outros elementos: a) as fugas de Annina com Cosimo para as cavoni (pp. 187-195) trouxeram-me à mente algumas páginas de Herculano, sobretudo no que diz respeito ao papel da negritude noturna na estória amorosa; b) a matança do porco (pp. 203-205), por sua vez, lembraram-me a ruralidade do Manuel da Fonseca de “Mataram a Tuna”; c) algumas das ações secundárias, como as de caráter social, económico e político fizeram-me reviver obras de realizadores de cinema como Vittorio de Sica e Rossellini, e mesmo a interconexão do político com a festa de bordel, salvaguardando as especificidades dos espaços de festa, mostraram-me analogias com “O Baile” de Ettore Scola; d) por fim, a caraterização psicológica das personagens: as perturbações da personalidade em Marzio Falaschi e na professora Bartolini, a bipolaridade de Alessia, os picos depressivos do Dr. Sedicario, etc. 

Convém, no entanto, e à guisa de conclusão, deixar bem claro que não estamos perante uma tateante procura de uma qualquer novidade informe e que mal se vislumbra, um navegar à bolina do já sido. Não! É bem claro o que se pretende alcançar! E foi exatamente por isso que deixei Peppino para o fim, essa personagem com que o romance se inicia e se encerra; Peppino, o que colhe aquilo que os outros já não querem para, a partir daí, criar um novo que extasie; Peppino, o arquétipo do maravilhamento; imagem de todo aquele que ousa, mesmo que o seu tempo seja Um Tempo a Fingir.

 


 

(1) “É a isto que eu chamo a ultradireita. Esta divide-se, por seu lado, em dois grandes subgrupos. A direita extremista rejeita a essência da democracia, isto é, a soberania popular e a regra da maioria. O exemplo mais infame da direita extremista é o fascismo, que levou ao poder Adolf Hitler (…) e Benito Mussolini, o Duce italiano, e foi responsável pela guerra mais destrutiva da história mundial. A direita radical aceita a essência da democracia, mas opõe-se e elementos fundamentais da democracia liberal, especialmente, aos direitos das minorias, ao Estado de direito e à separação de poderes. Estes subgrupos opõem-se ambos ao consenso da democracia liberal do pós-guerra, mas de maneira fundamentalmente diferentes. Enquanto a direita extremista é revolucionária, a direita radical é mais reformista.” (Cas Mudde, in O regresso da Ultradireita, da Direita Radical à Direita Extremista. Barcarena: Editorial Presença, 2020, p. 19).